:: Kabuki

UMA FORMA DE TEATRO POPULAR ESTILIZADO.

O exagerado levado aos extremos faz com que seja mais fantástica ainda.

O Kabuki representa a arte popular dos últimos IV séculos, quebrando de vez com o requinte aristocrático de então. Em vez da moral silenciosa do zen, o kabuki foi o inverso de tudo que já se fez em termos de arte no Japão da época. O Kabuki surge junto aos comerciantes que fomentam a transformação dos ideais da sociedade. Como que até aquela época o país estivesse fechada aos anseios da população, dominada sob o estigma dos guerreiros samurais, agora, quando reina a paz e a tranqüilidade embevece o país, o pensamento volta-se para “recuperar” o tempo perdido.

De repente um matraquear quebrando o silêncio: as cortinas nas cores preta, marrom e verde dão descerradas e o cenário surge desplendorosamente rica em cores berrantes com adereços por todo o lado. Está dando início a mais um espetáculo de kabuki, o mais popular teatro tradicional japonês. O que causa maior impacto é o efeito visual levado aos extremos do exagero, onde cada detalhe possui importância vital para compor o clima da época, fantasticamente delineada. Assistir a esse espetáculo só é possível indo ao Japão ou aproveitando as turnês que as companhias kabuki fazem ao redor do mundo.

Para os japoneses, o kabuki é a arte dedicada ao deleite da gente comum, satisfazendo os caprichos contemporâneos, gostos e desejos de uma época. Em todos os aspectos, ele é elegante e vulgar, cômico e trágico, desenvolvendo o tema central da peça através de um ritmo que compõe-se de ka, bu, ki, ou seja, “cantar”, “dançar” e “representar”. O teatro kabuki não deve ser visto como algo muito sério, intelectual ou filosófico, mas como uma representação elaborada de entretenimento popular que não deixa de ter suas raízes artísticas.

Apesar dos 400 anos que o separa de sua remota origem, a continuação do kabuki é decorrente da herança familiar dos atores que estão a dezesseis gerações ininterruptas nessa atividade artística. As peças em sua grande maioria são tiradas dos fatos da gente comum e também da vida aristocrática. Num processo acumulativo, o kabuki veio associando influências em primeiro lugar no teatro Nô e do Kyogen e, posteriormente refugiou-se dentro do enredo do Bunraku (teatro de marionetes). O kabuki passou então a se definir com as próprias características no fim do século XIX, quando ocorreu sua fase de amadurecimento.

Transformando-se em mulher.

No início só as mulheres atuavam dentro do kabuki e vestiam se como homens ao representarem personagens masculinos. O governo proibiu o “Okuni-kabiki”, como era chamado, devido ao escândalo que provocou na época, quando os homens que ia assistir estavam mais preocupados com a beleza das atrizes do que propriamente com o espetáculo. O “okuni” dava ênfase exagerada no sensual e no sensacional, convertendo-se no fator decisivo da imoralidade da sociedade, amante do prazer e das coisas mundanas. Tudo isso era reflexo da era Genroku, séc. XVII. Posteriormente surgiu o “Wakashu-kabiki”, formado unicamente por rapazes, mas acabou se degenerando e finalmente proibido também.

O verdadeiro kabuki como conhecemos hoje surgiu posteriormente formado somente por homens. A arte de se transformar em mulher foi criada na época em que atores especializavam-se nessa modalidade. A beleza de “Onnagata” obedeceu a um padrão idealizado por homens, ou a forma de como a mulher devia portar-se. Aquela feminilidade exagerada não é natural do desempenho de uma mulher, mas calcada em certos conceitos da observação masculina. Na Inglaterra da Idade Média, os atores das peças Sheakesperiana também tinham que se travestir-se de mulheres, não sendo, portanto uma característica unicamente do Japão.

Assumindo o personagem.

O que realça a presença dos artistas kabuki é a maquiagem altamente estilizada, marcando os contornos dos olhos, os cílios e a boca. Cada cor está ligada a uma simbologia que representa o temperamento do personagem, assim como o branco é usado por mulheres e jovens apaixonadas, o vermelho retrata a ira e a cólera, o cinza a melancolia, azul-preto os vilões e o verde os espíritos diabólicos e visitantes de outro mundo.

A vestimenta participa desse conjunto multicor ajudando a caracterizar o ator kabuki. Tudo é absurdamente exagerado o que o torna mais atraente. O choque visual não se limita somente a esses parâmetros; a mímica possui força de expressão, os movimentos são feitos em cadência com alto nível de perfeição sugestiva culminando em uma pose dinâmica de equilibrada força e beleza conhecida como “Mie”.

O “Mie” é a pose exagerada e estilizada algumas vezes conduzido por um só ator, outras pelo grupo todo, quando de uma cena que tenha que expressar ira, determinação ou outro sentimento de emoção forte que a situação exija. Os olhos enviesados, os braços estendidos, dedos rijos, provocam uma impressão de força concentrada e precisa. Pode até ser grotesco e sobre-humano, mas insere em si o eixo central da arte kabuki.

Por um repertório popular.

O kabuki por atuar dentro das camadas populares não se preocupava em agradar o governo como fazia o teatro Nô. Os dramas históricos são tratados até com ironia em que guerreiros e nobres são figuras centrais de tais narrações; a maioria derivada do Bunraku (teatro de marionetes). O drama doméstico por outro lado, é essencialmente voltado para a vida da classe plebéia identificando-se com seus problemas e sonhos. No kabuki, o real parece mergulhar para o campo da encenação, dando lugar para os aspectos superficiais da elocução e da cor. A própria estória relegada a um segundo plano.

O kabuki sempre esteve atento às exigências de sua época, adaptando-se às condições do momento. A vivacidade está justamente nessa constante renovação que torna a temática mais popular. Agora, com a vinda dos tempos modernos, o kabuki viu-se forçado novamente a buscar apoio junto ao se grande público. Em contrapartida, surgiu o teatro contemporâneo junto a outras formas de lazer. O kabuki defronta-se com esse dilema: manter-se como está ou absorver influências do mundo atual. É um problema que cabe ao próprio teatro kabuki resolver.

Autor: Francisco Handa – doutor em história pela UNESP, desenvolve pesquisa sobre cultura tradicional japonesa. É monge da escola Soto Zenshu.

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