:: A HISTÓRIA DO UNDOUKAI

O modelo do atual UNDOUKAI foi criado no século XIX, no início da Era Meiji (1868-1912), e embora atualmente a "gincana poliesportiva" seja essencialmente um evento civil e familiar, na origem era uma atividade militar. Registros da Marinha indicam que o primeiro UNDOUKAI teria sido realizado em março de 1874, num centro de alojamentos em Tóquio, sob a orientação de um instrutor inglês. Então chamado de "athletic sport", o dia de competições abrangeu alguns tipos de corridas, arremesso de peso e algumas disputas de caráter mais divertido, como a "perseguição ao porco" (prova na qual vence o rapaz que conseguir pegar apenas com as próprias mãos um estabanado suíno besuntado com banha, que foge de seus perseguidores correndo a esmo), atividade aparentemente associada às festividades de colheita agrícola na Inglaterra. Em 1878, a Escola Agrícola de Sapporo, na província de Hokkaido, promoveu um evento parecido com o "athletic sport" de Tóquio, ao qual se deu o nome de Rikigeikai (reunião de força e arte). Alguns anos depois, em 1885, a Universidade de Tóquio realizou uma competição do tipo, na qual usou-se pela primeira vez a expressão UNDOUKAI, que era o nome do Departamento de Esportes da Tõdai (contração de Tõkyõ Daigaku, Universidade de Tóquio).

No final do século XIX, o Japão passou por um período de rápida industrialização e de modernização das instituições e da sociedade, seguindo moldes ocidentais. Nessa mesma época, seguindo a mesma política armamentista das potências européias, o governo japonês adotou uma ideologia nacionalista pautada numa crscente militarização da população civil: a ideologia do kokutai ("essência do país", ou "essência nacional"), sintetizada no lema "fukoku kyõhei" ("enriquecer o país e fortalecer o militar"). Durante a primeira guerra sino-japonesa, ocorrida em 1894 e 1895, muitos soldados japoneses adoeceram, e o governo da época concluiu que para ter soldados mais saudáveis e bem preparados era necessário que a população fosse melhor preparada desde a infância. Assim surgiu a idéia de se usar as escolas para fornecer a base de tal preparação.

A introdução do UNDOUKAI nas escolas primárias surgiu nesse período, como parte de um projeto maior de introdução de treinamento militar para crianças na escola. Entendia-se que a educação física devia servir ao objetivo de fazer a criança aprender a noção de consciência nacional com o próprio corpo e por isso, ao invés de difundir esportes como o judô ou o sumô - que apesar de tradicionais implicavam em uma prática individual - o governo priorizou as modalidades em grupo. O UNDOUKAI logo tornou-se a ocasião ideal para as escolas, uma vez ao ano, apresentar os resultados do treinamento físico e do aprendizado ideológico das crianças - uma característica que perdurou até o fim da 2ª Guerra Mundial, em 1945.

Entretanto, as escolas japonesas no século XIX eram via de regra pequenas e mal equipadas. Assim os UNDOUKAIS da época eram organizados pela comunidade, com a participação de várias escolas de uma região, e usando um jinja (templo xintoísta) local, templos estes que normalmente possuem amplas áreas para realização de festivais. Como as escolas ficavam longe do jinja, era comum que os professores organizassem caminhadas para levar os alunos ao local. A caminhada em grupo ao local do UNDOUKAI foi chamada de ensoku (excursão; caminhada longa), e por isso o próprio evento foi apelidado de ENSOKU UNDOUKAI durante muitos anos. Até 1965, o UNDOUKAI era realizado em setembro, quando terminam as colheitas. Nesse ano foi estabelecido o feriado de Taiiku no Hi (Dia dos Esportes), e a partir de então passaram a ser realizados em 10 de outubro. Essa data marca a abertura das Olimpíadas de Tokyo de 1964.

No Brasil, a maioria dos UNDOUKAIS é realizada no mês de maio, por causa do clima adequado, e também por que é o mês dos meninos no Japão. O local do UNDOUKAI é decorado com um grande mastro que tem na sua ponta o koinobori, que são grandes pipas de tecido em forma de carpas, tradicional símbolo do Dia dos Meninos (Kodomo no hi).Koinobori

A partir de 1900, determinou-se que todas as escolas no Japão construíssem espaços apropriados para a prática de educação física, na proporção de 1 tsubo (cerca de 3,30 m2) para cada aluno da escola. Na virada do século XX, o número de alunos por escola no Japão chegou à média de 300 crianças, e desde então as escolas japonesas vêm mantendo amplos espaços externos para práticas esportivas. A implantação de tais espaços permitiu que as escolas se tornassem os locais adequados para a realização dos UNDOUKAIS, ao invés dos jinjas. Quando o Japão perdeu a 2ª Guerra em 1945, o UNDOUKAI já era um evento social das coletividades integrado à cultura popular japonesa. O governo de ocupação americano (1945-1952) permitiu que os UNDOUKAIS continuassem sendo realizados nas escolas, mas procurou retirar ou amenizar o caráter militarista do evento, ganhando o caráter de evento cívico comunitário que tem hoje.

Assim, por exemplo, as músicas tocadas e cantadas nos UNDOUKAIS, que até então eram invariavelmente marchinhas militares, foram substituídas por canções infantis. Hoje escuta-se num UNDOUKAI uma grande variedade de sucessos infantis: do hit dos anos 50 "Zõsan" (O Elefante), a "Dangosan Kyõdai" (Os Três Bolinhos Irmãos), tema de um programa infantil da tevê NHK que bateu recordes de vendas nos anos 90, passando pelos ritmos acelerados e dançantes das Mini-Moni (contração de Mini Morning Musume, grupo de meninas cantoras pop com menos de 14 anos de idade, de grande sucesso entre crianças até 12 anos no Japão).

Resquícios da origem militar do UNDOUKAI ainda podem ser vistos - ou melhor, ouvidos - nos eventos realizados no Brasil. Até hoje, a principal música tocada na abertura dos UNDOUKAIS nipo-brasileiros é "Gunkan" (O Navio Militar), marcha composta em 1897 por S. Toriyama e T. Setoguchi para a marinha japonesa, que de modo poético fala sobre uma "fortaleza flutuante que protege os quatro cantos do império", embora atualmente poucos sequer aparentem entender a letra. (Ouça "Gunkan", versão gravada em 1909 pela Nipponophone, em Real Audio Player, fazendo download do arquivo de 345 kb. Após clicar no texto em destaque com o botão direito do mouse, selecione Salvar Link como...). A mesma música em mp3: "Gunkan"

O INCERTO FUTURO DO UNDOUKAI

Embora no Japão o UNDOUKAI esteja atualmente passando por uma fase de popularidade renovada e crescente, no Brasil vários fatores vêm nas últimas três décadas reduzindo o número de participantes, tanto entre os voluntários que organizam e realizam o evento, como entre os que vêm apenas para brincar.

O primeiro fator é de ordem física. Necessitando de grandes espaços abertos - do tamanho de pelo menos um campo de futebol - os lugares para a realização de um UNDOUKAI, com o crescimento das cidades são cada vez mais raros, e nas grandes metrópoles, caros demais.

Um segundo fator, de ordem sócio-econômica, tem relação com o fenômeno dekassegui. Expressão que significa "trabalho longe de casa", ela designa um enorme grupo de brasileiros desecendentes de japoneses que desde 1989 emigram legalmente para o Japão, à procura de melhores salários e oportunidades de trabalho. Estimativas oficiais apontam que existam atualmente 250 mil imigrantes brasileiros no Japão (considerando que o número total de nipo-brasileiros é de pouco menos de 1 milhão e 400 mil pessoas, 20% da comunidade não se encontra mais no Brasil). Parte dos dekassegui planeja retornar ao Brasil com economias, mas uma crescente parcela deles conquista condições de vida e patrimônio de classe média no Japão (emprego ou pequeno negócio próprio, casa própria equipada e carro novo), e atraídos pela economia estável, pela segurança pública e pelo ensino de qualidade para os filhos, decidem estabelecer-se de vez no arquipélago. Nos últimos anos, famílias inteiras de nipo-brasileiros - em geral jovens ou adultos em fase produtiva - estão se transferindo em definitivo para o Japão, enquanto no Brasil muitas comunidades estão cada vez mais se restringindo a idosos ou aos jovens demais para emigrar, e algumas já ameaçam desaparecer. A redução da comunidade nipo-brasileira é visível na diminuição do público dos UNDOUKAIS e na quantidade em que tais eventos são realizados.

Um terceiro fator - talvez o mais polêmico e de difícil solução - é de ordem cultural, mais especificamente, da desaculturação dos descendentes de japoneses. Na procura de uma identidade ocidental, a maior parte dos nipo-brasileiros afastou-se das comunidades de imigrantes e deixou de lado sua herança oriental. Chegou-se ao ponto de, por exemplo, atualmente ser fácil encontrar em São Paulo descendentes de japoneses que falam fluentemente inglês e alemão, mas que não conseguem entender quase nada em japonês. A maioria dos nipo-brasileiros mal conhece a história do Brasil - o que dizer então da história milenar do povo do qual descendendem diretamente?

Embora pareça que ser nipo-brasileiro deveria implicar numa somatória de duas culturas, na prática isso não ocorreu como regra. Pelos mais diversos e imagináveis motivos, que vão desde conflitos familiares, discriminação social ou racial, acontecimentos históricos ou meras escolhas pessoais, fato é que a maior parte dos nipo-brasileiros achou mais conveniente afastar-se das comunidades de imigrantes e de suas atividades, para dedicar-se a estilos de vida e valores ocidentais, entendendo que para ser brasileiro era necessário distanciar-se da raiz japonesa. A crise de identidade dos nipo-brasileiros, gerada pelo choque de duas culturas diferentes entre si - até antagônicas em alguns aspectos - causou ao longo de décadas um afastamento voluntário de muitos descendentes das comunidades e, por tabela, dos UNDOUKAIS.

Nos últimos anos o crescente interesse e valorização de aspectos da cultura japonesa pela sociedade brasileira, como a culinária, filmes e desenhos animados, os mangás (quadrinhos japoneses), artes marciais, o karaokê e o budismo, fez com que parte dos descendentes de japoneses - principalmente os mais jovens, sanseis ("3ª geração", netos dos imigrantes) e yonseis ("4ª geração", bisnetos dos imigrantes) - também se interessassem pela cultura japonesa, procurando resgatar a herança oriental menosprezada pela geração anterior, freqüentando as atividades das comunidades ainda existentes. Pensando no futuro dos próprios filhos, e mesmo que muitos entre eles não tenham ido a UNDOUKAIS na infância, sanseis e yonseis atualmente lutam para preservar a tradição do evento, e gerar boas lembranças de família e de comunidade.

25/maio/2006

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