As escolas femininas japonesas no Brasil – 4

 

A 2a GUERRA MUNDIAL E OS ANOS DE EXCEÇÃO

Durante a 2a Guerra Mundial (1939-1945), a comunidade nipobrasileira sofreu uma marginalização imposta pelo Governo Brasileiro durante o regime Getúlio Vargas. Em 1942 o Brasil decidiu alinhar-se com os Estados Unidos e os países Aliados, declarando guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). A partir disso os imigrantes japoneses passaram a sofrer uma série de limitações em seus hábitos. Era proibido falar em japonês em público, lecionar japonês ou escrever em japonês sob risco de prisão sumária. Jornais em japonês foram fechados, livros e cartas em japonês eram confiscados e reuniões com mais de cinco pessoas de etnia japonesa eram proibidas, inclusive festas de aniversário, casamentos e funerais. As relações diplomáticas com o Japão foram suspensas em 1942 e seriam retomadas só a partir de 1952, o que significou uma década sem comércio e nem contato entre Brasil e Japão.

As escolas japonesas no interior de São Paulo, do Paraná, e nas comunidades mais distantes no norte do Brasil foram fechadas (slide 13). Na capital de São Paulo, entretanto, as escolas de corte e costura conseguiram se manter em funcionamento, se adaptando a uma série de exigências do governo. Tiveram que mudar de nome, eliminando a nomenclatura em japonês e adotando um nome que fosse totalmente brasileiro e em português. O ensino do japonês foi proibido e todo material didático foi substituído por uma versão em português. As escolas de corte e costura, que eram administradas pelas diretoras-proprietárias imigrantes japonesas, passaram a ter um diretor brasileiro e uma interventora brasileira nomeados pelo governo. Professoras brasileiras passaram a ensinar português nas escolas femininas japonesas.

O fechamento das escolas no interior fez a procura pelas escolas na capital aumentar. Diante das dificuldades causadas pelas proibições, as donas das escolas procuraram acomodar o máximo de alunas que podiam, e alunas que moravam na capital e arredores passaram a estudar em regime semi-interno, indo e voltando para as próprias casas. A escassez de alguns alimentos e produtos durante a guerra também causou dificuldades nas atividades diárias das escolas.

O funcionamento das escolas femininas de corte e costura foi permitido, em grande parte, pelo fato de priorizarem o ensino de uma habilidade técnica então considerada fundamental para as mulheres. Mesmo antes da 2a Guerra não se podia registrar oficialmente no Brasil uma escola estrangeira com currículo, programa e material didático estrangeiros, e aulas dadas totalmente em idioma estrangeiro. Como o objetivo principal era o ensino de corte e costura, e o material necessário mais óbvio eram as máquinas, foi possível manter essas escolas abertas.

Mesmo com tantas proibições ao idioma japonês, as escolas de corte e costura continuaram discretamente usando o japonês como principal idioma de comunicação em sala de aula e no dia a dia, mesmo porque essa era a língua materna das alunas. As técnicas de modelagem e de cálculo usadas nessas escolas eram japonesas (a partir da década de 1950 surgiram escolas que anunciavam que ensinavam a “técnica francesa”, para diferenciar da técnica japonesa que era o padrão), daí que era mais fácil ensinar e aprender usando o idioma japonês.

Durante os anos da proibição do japonês, as escolas de corte e costura foram discretos bastiões de preservação do idioma no Brasil. Ao longo da vida vi que boa parte das famílias de imigração antiga, que preservaram algum grau de alfabetização e conhecimento do idioma japonês, eram de descendentes de mulheres que estudaram nas escolas de corte e costura da colônia quando jovens. Entre essas pessoas posso citar minha falecida professora de Etiqueta à Mesa, Lumi Toyoda, de quem tive a honra de ter sido assistente e cuja mãe, Etuko Toyoda, foi aluna da Escola São Paulo de Corte e Costura. Além de fluente em japonês e culinarista, a professora Lumi também foi presidente da Associação Aichi Kenjinkai e do Rotary Club de São Caetano do Sul. Infelizmente muitos netos e bisnetos de imigrantes que chegaram no Brasil antes da 2a Guerra Mundial já não escrevem nem falam japonês e não praticam a cultura e hábitos dos antepassados, uma desaculturação resultante do período de proibição do ensino do japonês e da ânsia de integração e aceitação na sociedade brasileira no período pós-guerra, em contraposição ao preconceito e marginalização que muitos descendentes sofreram durante o período de exceção.

A título ilustrativo, gostaria de lhes mostrar páginas do livro “Córte Certo” de Iracema F. Mota, adotado pela Escola Internacional de Corte e Costura como substituto do livro original em japonês durante o período de exceção da guerra (slide 14). As alunas na prática aprendiam o método japonês, que consideravam mais simples e eficiente, mas carregavam consigo o livro brasileiro, que tinham dificuldade para entender e lhes parecia confuso e complicado, mais parecendo um livro de equações matemáticas. Elas carregavam o livro em português à vista e escondiam um caderno com anotações das aulas em japonês, para cumprir as determinações do governo.

A AUTORA DO MAIOR LONG SELLER NIPOBRASILEIRO

Numa época em que quase não havia refrigeradores em casa, que fazer uma refeição implicava em lidar com ingredientes sem qualquer processamento prévio e que as donas de casa tinham que saber matar, sangrar, depenar e eviscerar um frango antes de temperar e assá-lo, outro curso considerado vital para as mulheres era o de culinária.

Mais do que mostrar receitas de pratos com todos ingredientes à disposição num balcão, misturá-los, esquentar e apresentar o resultado final como num programa de TV, as Escolas de Culinária da colônia ensinavam algo ainda mais desafiador e complexo. Ensinava a tradição culinária japonesa num país no qual os ingredientes originais não existiam e tiveram de ser criados a partir de matérias primas diferentes e em condições de processamento diferentes das do Japão. Ensinava técnicas e receitas de culinária ocidental para japonesas.  E ensinava como organizar física e financeiramente a alimentação de uma família para ser saudável e eficiente.

Foi nesse ambiente desafiador que a culinarista imigrante Hatsue Sato chegou no Brasil no final de 1929 (slide 15). Partindo de sua própria experiência ela escreveu um livro chamado “Jitsuyõna Burajiru Shiki Nippaku Ryõri to Seika no Tomo” (literalmente “Amigas da Confeitaria e da Culinária Nipobrasileira, na Prática do Estilo Brasileiro”). Originalmente escrito em “colônia-gô” (mistura do idioma japonês com muitas palavras em português, escrito em caracteres japoneses – o que dificulta ou torna quase impossível a compreensão para um japonês que não vive no Brasil ou não conhece português), que era o linguajar usado pelos imigrantes no Brasil, é um livro publicado desde 1930 até hoje, que o torna o maior long seller nipobrasileiro. Traduzido para o português no início da década de 1970, o livro é um registro impressionante da culinária japonesa adaptada com ingredientes brasileiros e de receitas brasileiras como eram há 90 anos. A edição que está atualmente a venda foi atualizada e publicada pela Editora JBC em 2005 com o título “Arte Culinária Nipo-Brasileira”.

Em 1931, Hatsue Sato abriu a Santa Seshiria Kappo Gakkou (Escola de Arte Culinária Santa Cecília) numa casa na Rua Backer, no Cambuci. O curso completo da sra. Sato abrangia culinária nipobrasileira, internacional, confeitaria ocidental e japonesa, nutrição, processamento de frutas, legumes e carnes (técnicas para fazer conservas, desidratados, embutidos, defumados e de abate, limpeza e corte de aves e peixes) e etiqueta à mesa, o que incluía a maneira correta de montar mesas para banquetes (algo importantíssimo num casamento estilo japonês onde definir onde noivos, parentes e convidados se sentam numa festa deve respeitar uma hierarquia), formas de serviço e comportamento pessoal. Algumas das alunas da Santa Cecília se tornaram bem sucedidas banqueteiras, donas de restaurantes e confeiteiras.

Tamanha foi a influência das Escolas Femininas na comunidade nipobrasileira por gerações que a Escola Internacional de Corte e Costura, a Akama Gakuin (Escola São Paulo de Corte e Costura) e a Santa Cecília de Arte Culinária foram chamadas de “Koronia Sanbon no Hashira” (os Três Pilares da Colônia Japonesa).

O conhecimento culinário e senso administrativo das mulheres daquela geração era impressionante e um dos exemplos disso foi o Esuperansa Fujinkai (em português, Associação Beneficente Feminina Esperança), uma das mais bem sucedidas e duradouras associações de senhoras voluntárias da comunidade nipobrasileira. De 1949 até falecer, a Sra. Hatsue Sato exerceu o cargo de vice-presidente do Esperança Fujinkai.

(continua nos links abaixo)

1 – http://www.culturajaponesa.com.br/index.php/guia-japao/educacao-feminina-japonesa-no-brasil/educacao-feminina-japonesa-no-brasil-1/

2- https://www.culturajaponesa.com.br/index.php/guia-japao/educacao-feminina-japonesa-no-brasil/educacao-feminina-japonesa-no-brasil-2/

3 – http://www.culturajaponesa.com.br/index.php/guia-japao/educacao-feminina-japonesa-no-brasil/as-escolas-femininas-japonesas-no-brasil-3/

4 – Esta matéria

5 – http://www.culturajaponesa.com.br/index.php/guia-japao/educacao-feminina-japonesa-no-brasil/as-escolas-femininas-japonesas-no-brasil-5/

6 – http://www.culturajaponesa.com.br/index.php/guia-japao/educacao-feminina-japonesa-no-brasil/as-escolas-femininas-japonesas-no-brasil-6/

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