Burguesia no Japão
Os comerciantes sugiram no Japão em plena Idade Média, transformando a economia e o próprio status quo do Samurai.
As administrações eficientes das companhias japonesas de hoje têm origem, em grande parte, nos séculos XVII e XVIII num país mergulhado num sistema feudal, porém onde a economia dinamiza-se nos centros urbanos com a formação de nova classe social, a do chonin. É o equivalente a que no ocidente costuma-se chamar por burguesia. Com a batalha de Sekigahara, em 1600, o xogun Tokugawa consolida seu poder, inaugurando uma era de paz e prosperidade, mudando os rumos da história japonesa. O clã Tokugawa permanece no poder até 1867 com a derrubada do xogunato (governo militar) e instaurando, novamente, o mikado (governo imperial). Nesse curto espaço de tempo, a autonomia do samurai é vencida pela audácia comercial dos chonin que tornam-se milionários, porém sem tradição. O inverso ocorre com os Samurais, cada vez mais pobres, mas detentores de um título nobiliárquico.
Empreendimentos como os do Banco Mitsui, que controlava o capital da casa Tokugawa e do Grupo Sumitomo, originaram-se no século XVII. Sabe-se que a casa bancária Mitsui abriu sua primeira agência em 1683 em Edo (atual Tokyo), expandindo-se posteriormente para Kyoto e Osaka. Quanto ao Sumitomo, o seu fundador, Masatomo Sumitomo, mercador de cobre, foi o primeiro japonês a desenvolver a técnica da extração de prata em minério de cobre. Juntamente com o seu cunhado, Riemon Soga, dominou a indústria de cobre em Osaka.
O desprestigiado mercador
O sistema de divisão de classe social instituída pelo xogunato Tokugawa, o mibun¸ classificava as pessoas em shi, no, ko, sho, ou sejam, respectivamente: guerreiros, agricultores, artesãos e mercadores. Os mercadores, chamados de chonin, eram olhados com desprezo por todos. Os agricultores, por pagarem mais taxas pelo uso da terra e trabalharem dias a fio nas plantações de arroz, tinham um valor social mais grande. O artesão, por seu lado, manufaturava tanto as espadas dos samurais quanto os instrumentos agrícolas dos agricultores. Era bem visto. Mas o que oferecia um bom comerciante? Era um intermediário que se enriquecia com o trabalho alheio.
Para se protegerem, os chonin organizaram-se em za, guilda, a fim de monopolizar o comércio nas cidades. Os comerciantes de Omi, em cooperação com o Templo Enryaku-ji, no Monte Hiei, revendiam seus produtos de Kinki em Edo, e desde em Tohoku, formando uma rede comercial intrincada. Grandes lojas foram abertas ao longo das estradas que ligavam as principais cidades, como a de Nihonbashi, em Edo; Hon, em Osaka; e Sanjo, em Kyoto. Quanto mais ricos se tornavam, em igual proporção ganhavam a impopularidade. A moral aristocrática e confuciana chocavam-se com a prática burguesa.
O preconceito social, no entanto, não desacelerou a expansão das cidades. As que mais cresceram foram Edo, Osaka e Kyoto. De acordo com as estimativas, no século XVIII, havia 600 mil chonin vivendo em Edo, 300 mil em Osaka e 300 mil em Kyoto. No final do Período Edo (xogunato Tokugawa), a população japonesa girava em torno de 32 milhões; destes, 6 a 7% eram formados pelos samurais; 80 a 85% por agricultores; 5 a 6% por chonin; 1,5% pelo clero e o restante, 1,6%, por desclassificados. Nesse mesmo século, a população de Edo estimava-se em 1,3 milhões, superando a de Londres e Paris, 900 e 600 mil habitantes respectivamente. Possivelmente, Edo era a cidade com o maior índice populacional do mundo.
O desenvolvimento de Edo, Osaka e Kyoto têm características próprias. Osaka e Kyoto, que se situam na região de Kinki (kamigata), rivalizavam com Edo. A capital xogunal, Edo, prosperou devido a uma grande cadeia de lojas varejistas que vendiam para os samurais. Estes formavam uma população de 600 mil guerreiros. Por outro lado, Osaka foi tomada por atacadistas, que usavam os afluentes dos rios para escoar gêneros de diversas naturezas. O principal pólo de atração era Edo. Além disso, em Osaka, Por estar melhor situada, as mercadorias embarcadas no sul de Honshu passavam por lá. Aproveitando-se disso, Osaka tornou-se também grande produtora de algodão, óleo e cobre fundido. Kyoto, por sua vez, manteve o requinte de ser repositário da cultura aristocrática, mas agora, diferentemente, começou a produzir seus artigos em escala comercial. Sua indústria artesanal manufaturava armaduras, ao lado dos produtos de luxo como seda, corantes, lacas, altares budistas e implementos de cobre. Tornou-se a capital dos negócios e o centro financeiro que contava com a presença de 400 mercadores que mantinham relações cordiais com a corte dos nobres e samurais. Freqüentemente, eles fomentavam um comércio internacional com a China.
O pensamento entre os chonin de Osaka e Edo era deveras diferente, fruto de discórdias. O dinheiro tinha significados opostos. Edo era a cidade dos consumidores, enquanto Osaka, cidade de enorme produtividade. Ilustra Kaiho Seiryo, um pensado chonin que viveu nesta época, em “Masu Shodan”: “Edo é um lugar onde pode fazer dinheiro, ainda que poucas pessoas escolham esta carreira. Kamigata, por outro lado, é um lugar onde impera a dificuldade de fazer dinheiro; entretanto, muitas pessoas, com sinceridade, devotam-se ao oficio”. O chonin de Edo usava a falsa imagem de poder e era arrogante em despender seus gastos no mesmo dia que ganhava dinheiro, “não deixando o sol do próximo dia brilhar para eles”, como disse Kaiho.
Os discriminados da discriminação
Ser um chonin era ser discriminado, mais ainda quando se é pobre. Estes, pelos próprios chonin já estabelecidos. De acordo com o sistema mibun, proprietários e arrendatários citadinos eram considerados chonin. Aos olhos da lei, somente os chefes de família podiam ser considerados chonin, garantindo dessa forma sua cidadania. Os chefes de família eram os que pagavam impostos como proprietários de terras. Os arrendatários estavam excluídos, não podendo manifestar-se na administração pública ou pleitear cargos desta natureza. Nem mesmo participavam legalmente dos festivais. Excluídos, inclusive, da própria comunidade chonin, viviam ao longo das estradas, becos e vielas. Uma única família ocupava um quarto de 16,5 m2 pagando um aluguel de 100 mon (7 dólares atuais) por ano.
As revoltas não tinham vez no mundo chonin, pois havia a liberdade de enriquecer-se e, conseqüentemente, alcançar o poder. Num jogo liberal, as cartas tinham sido lançadas. O sucesso dependia de seu próprio desempenho. O policiamento era civil, organizado pelo líder da comunidade local. A ordem era mantida a todo o custo pela própria comunidade no chamado “Gonin-gumi-seido”. Formavam unidades de 5 famílias, que respondiam diante das autoridades. Se uma das famílias deixasse de pagar as taxas, os outros membros tinham que cobrir a infração. O mesmo ocorria em caso de crime. Um assassinato era pago com a sentença recaindo sobre a cabeça de todos. Isso contribuiu para que se reprimissem as delinqüências e faltas contra a sociedade.
Forasteiros não eram bem vindos nas comunidades. Olhava-se lhes com desconfiança. Ingressar numa outra comunidade que não fosse originalmente a sua era difícil, devido aos vários empecilhos que se colocavam, mas não era impossível. O pretendente a alugar ou comprar a casa tinha que levar bons antecedentes e submeter-se aos regulamentos expressos daquele grupo. Ao final, para demonstrar a sua boa intenção, distribuía presentes a todos, incluindo oficiais, representantes e residentes. Os viajantes não entravam na cidade, circulando apenas nas estradas vicinais.
Apesar de formas para manter o bem-estar dos cidadãos, criaram-se maneiras para burlar a ordem estabelecida, escapando do controle oficial. Imensas fileiras de desempregados e vagabundos, para sobreviver, tornavam-se bombeiros. Contam os “Ensaios de Uzawa” que “nesta época, bombeiro, deliberadamente, esparramou o fogo e Echigoya, uma loja de tecidos que pertencia a um mercador rico local, consumiu-se entre as chamas. O seu dono procurou o chefe dos bombeiros para oferecer-lhe 200 ryo. Mas não conseguiu acha-la na multidão”.
O incêndio, por outro lado, sustentava uma infinidade de pessoas que dependiam dele. O bombeiro só era pago em casos de incêndio. Assim sendo, somente a sua propagação fazia a felicidade do bombeiro. O ciclo do fogo ocorria freqüentemente durante o inverno, nos meses que antecediam o final do ano.
Os japoneses acreditavam que os débitos tinham que ser pagos até esta data. Os bombeiros, como os trabalhadores desqualificados, não tinham como pagar suas dívidas. Dessa forma, ateavam fogo nas casas, sempre de madeira, para ganhar algum dinheiro e sanar seu problema financeiro.
A riqueza faz a cabeça
O enriquecimento do chonin leva ao colapso do sistema social mibum, quando a moral samurai é substituída por uma ordem mercadológica. Tudo vira mercadoria, a força de trabalho, o arroz, os produtos de luxo e as propriedades daimyo (senhor feudal) e do xogun. Inverte-se a situação social do mibum: o samurai, que está acima, cai; o chonin em sua arrogância chega a usar na faixa abdominal o par de espadas, símbolo máximo dos samurais. Nesse momento, o samurai encontra-se totalmente destruído de seus poderes. Chegam, ironicamente, a ser ridicularizados pelos comerciantes chonin. As crônicas contam sobre o tratamento que se prestava ao samurai: “O preço é muito caro para você”, ou “nós estamos muito ocupados”, ou ainda “aquele produto já foi vendido”.
No campo das artes, o vislumbramento da beleza se dá através de uma outra ótica, a do cidadão aburguesado. O chonin incrementa o desenvolvimento de um costume dominante oriundo das massas. Assim nasce o teatro kabuki, a balada joruri e o teatro de bonecos bunraku. Na pintura, surgem os quadros policromáticos Ukiyo-ê.
O que fez com que os ricos chonin se tornassem mais ricos foi o estabelecimento de um código moral entre iguais. O crédito das transações era a palavra verbal em vez do pagamento adiantado. Se uma das partes quebrava o compromisso, ele era ostracizado e acabava falindo. Em Osaka, os negócios eram estabelecidos a cada seis meses, o tempo que se demorava para o transporte da mercadoria alcançar seu destino.
O contrato de confiança mútua era o de não causar problemas para o outro. Diziam os chonin em Osaka: “Eu espero que você zombe de mim em público se eu quebrar a minha promessa”. Pensamentos que não se restringiam mais ao âmbito meramente das relações comerciais. Banto Yamakawa, chonin estudioso de Osaka, confabulou em “Yume no Shiro”: “O monarca não precede seus súditos, pois o povo existia primeiro, criando depois a figura do monarca”.
Um outro pensador burguês, Baigan Ishida, ensinava que “mercadores, artesãos e agricultores são tão dignos de respeito quanto o samurai”. Para ele, também, as transações comerciais não se limitam a perseguir lucros, mas igualmente contribuir para a estabilidade e bem da sociedade”. Baigan viveu no final do Japão feudal, mas pensava numa nação como um todo, fundamentada nas relações comerciais. O sonho de Baigan se concretizou. O sucesso da economia japonesa está intimamente ligado coma revolução burguesa naquele país. Revolução esta que iniciou-se em séculos passados, mas que não se interrompeu.
Matéria publicada em 6/89, no Jornal Portal
Autor: Francisco Handa.
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