Desconhecido no Brasil, mas uma celebridade no Japão, o escritor americano Donald Keene deu uma palestra com o tema “Eu e Kanazawa – para os jovens”. Aos 93 anos e mostrando uma lucidez fora do normal, falou em japonês o tempo todo.
Americano do bairro do Brooklin, em Nova Iorque, Donald Keene, aos 18 anos, então estudante da Columbia University, encontrou numa livraria na Time Square, um exemplar em inglês do “Genji Monogatari”, um romance escrito por uma mulher, Murasaki Shikibu, nos primeiros anos do século 11 (Período Heian). O livro chamou a atenção dele, não pelo título, mas pelo fato de ser muito barato. Ele comprou, leu e se apaixonou pela obra. Queria ler o livro no original, mas não sabia japonês e nem havia quem ensinasse. Assim, ele resolveu se alistar na Marinha, pois era o único lugar onde se ensinava japonês. O curso, conta ele, era intensivo e era o dia todo, não se fazia outra coisa a não ser estudar o idioma. Em apenas 11 meses ele aprendeu a falar, a ler e a escrever japonês. O ano era 1941 e logo depois começaria a guerra com o Japão, país que ele desejava muito conhecer, mas a ocasião era péssima.
Depois de se pós-graduar-se pela Columbia e passar pela Cambridge na Inglaterra, em 1953 ele finalmente conseguiu permissão para ir ao Japão. Foi como estudante de pós na Kyoto University. Nesse período, conheceu outros jovens promissores e resolveu fazer sozinho o percurso feito pelo poeta Matsuo Basho em 1639, que consta no livro “Oku no Hosomichi” (Sendas de Oku) de Basho. Foi assim que ele chegou a Kanazawa, em 1954. Donald conta que estava na cidade de Sendai, em Miyagi, quando alguém lhe disse: “Daqui até Kanazawa você não vai conseguir tomar um bom café”. De fato, foi isso mesmo. (Nota do jornalista: Já em 1919 (Ano 8 da Era Taisho) foi inaugurado um lugar chamado Café Brasil, no bairro de Kohrinbo, na cidade de Kanazawa, que foi o ponto de encontro de intelectuais e estudantes).
Donald disse que não conseguiu fazer o percurso a pé, como fez o poeta japonês, e viajou de ônibus, desceu em Kanazawa, onde ficou na hospedaria “Iroha”, e chegou até a cidade de Komatsu (perto de Kanazawa, onde fica o aeroporto da região). Ele contou com bom humor algumas coisas engraçadas dessa viagem, como a história do monge que estava tentando aprender inglês.
Donald Keene disse que as obras clássicas japonesas precisam ser reescritas em japonês adotando-se uma linguagem contemporânea. Disse que elas continuam sendo publicadas com o texto antigo, quase original (quase chinês, disse ele, porque os mais antigos foram escritos nesse idioma), e poucas pessoas podem entendê-lo. Ele prega que o original precisa ser publicado também, mas a versão atualizada poderia mostrar os encantos da literatura japonesa. “Esses livros são fantásticos, são belos, e é um desperdício não conseguir entendê-los”, disse o escritor, que completou: “Os estudantes estrangeiros apreciam muito a literatura japonesa antiga, porque a versão traduzida é fácil de ler, mas raramente os estudantes japoneses conseguem ler esses livros até o fim”.
Além do show que foi a palestra desse renomado intelectual americano, outro show apresentado foi o da organização da palestra. O palestrante e o condutor Shinsuke Tsutsumi estiveram bem à vontade porque a organização foi impecável. O auditório da Kanazawa Kogyo Daigaku tinha 700 cadeiras (soltas) e foram totalmente ocupadas. Ninguém movimentou a cadeira para ampliar seu espaço, ou colocou a bolsa na cadeira ao lado. Para aqueles que tinham bagagem maior (casacos e mochilas maiores), a organização reservou mesas no fundo da sala. Havia moças conduzindo os participantes a ocuparem as cadeiras da frente, pois japonês não gosta de sentar na frente. O evento foi organizado pelo consórcio de universidades da província de Ishikawa. Como a Kanazawa University faz parte do grupo, trouxe três ônibus cheios de alunos para a palestra. Na chegada dos ônibus, nenhum tumulto na entrada. Funcionários sinalizavam de longe e abriram passagem para o estacionamento interno. Os alunos desceram rapidamente e caminharam até o auditório no segundo andar de um outro prédio. No caminho estavam distribuindo mapas impressos com localização dos pontos de ônibus da região, para facilitar o regresso dos participantes. A palestra começou exatamente às 17h30 como estava previsto. Depois da palestra, as duas perguntas feitas por estudantes previamente inscritos foram respondidas, e o evento terminou exatamente às 19 horas, como estava previsto.
Há uma versão em espanhol, digital e gratuita de Sendas de Oku, para quem quiser lê-lo.