Ontem o prédio onde eu estava gemeu e tremeu, tal qual um trem iniciando viagem. Ainda bem que foi só isso. Em Nagano, onde foi o epicentro, o tremor foi de 6,8 graus. O asfalto das estradas levantou mais de meio metro abrindo-se em fendas enormes e 60 casas desabaram. A terra treme todos os dias em algum lugar no Japão e a maior preocupação é o tsunami que pode vir em seguida. No mês passado o monte Ontake entrou em erupção vitimando vários turistas que lá estavam, e este mês foi a vez do monte Aso em Kumamoto soltar lava e cinzas. A natureza é assim e pouco se pode fazer em relação a ela. Cercado pelo mar por todos os lados o arquipélago japonês, com suas mais de 6 mil ilhas e ilhotas, convive com essas surpresas desde os tempos remotos.
Essa terra instável pouco foi beneficiada pela natureza na sua criação. Não há petróleo, não há pedras preciosas, e o inverno rigoroso impede o cultivo nessa época do ano, além de dificultar a criação de animais. Na maior parte do Japão os motoristas são obrigados a trocar os pneus pelos de neve, as casas precisam ser totalmente vedadas e os telhados são envernizados para não acumularem neve, pois o peso da neve pode fazer uma casa desabar.
Como esse país nanico no tamanho – pois sua área total, incluindo todas as ilhotas improdutivas, é 23 vezes menor do que a do Brasil – pode ser uma superpotência econômica?
Os positivistas diziam que o meio faz o homem. Para sobreviver aqui o japonês precisa se preparar pensando no amanhã. É necessário fazer uma boa poupança para gastos inesperados e, no plano mais geral, é preciso que o poder público esteja equipado para emergências, que inclui grandes escolas com amplos pátios cobertos para abrigar desabrigados se for preciso. Mais do que um inconveniente, o inverno rigoroso é visto como oportunidade para vários negócios, inclusive o turismo. A indústria lucra e gera empregos produzindo energia, roupas e calçados apropriados, equipamentos para aquecimento e outros itens inimagináveis num país tropical. Querendo ou não, todos os anos o frio vem do mesmo jeito, e quem não estiver preparado corre risco de morrer.
Muitos países grandes estão em zonas frias e o inverno gera negócios. Isso faz um país sobreviver economicamente, mas não o transforma numa superpotência. Como, num lugar como é o Japão, a renda per capita pode ser de USD 37.539, enquanto no Brasil, grande país tropical com muitos recursos naturais e população jovem, a renda é de USD 11.067 (estimativa de 2014), ou seja, menos de 1/3 da do Japão?
Pessoalmente tenho uma tese e para explicá-la, como não sou economista e não gosto de economês, queria transpor o país todo numa escala menor para fazer comparações com outros países. Vou fazer de conta que a indústria automobilística mundial, já que é globalizada, seja o nosso mundo inteiro hoje.
Sabemos que o automóvel que usamos hoje é fruto do esforço de todos os países produtores. Por exemplo, se a luz de ré brilha com certa intensidade, é porque no passado alguém testou isso e chegou à conclusão de que era o melhor. Outros tentaram idéias diferentes mas chegaram à mesma conclusão, e agora todas as luzes de ré têm o mesmo brilho.
Em termos gerais penso que a Alemanha, com sua tradição em equipamentos mecânicos, tenha contribuido para a robustez dos carros. A Itália, com seu apreço pelas artes, creio que tenha ajudado a melhorar o design. Os ingleses, pelo gosto por velocidade, talvez tenham melhorado o desempenho do automóvel. Os americanos, por sua vez, contribuiram com a redução de custos criando a produção em massa e a popularização do automóvel no mundo. Mas onde entraram os japoneses?
Sempre se falou na miniaturização que os japoneses conseguem fazer com seus produtos. De fato, isso acontece porque os espaços são pequenos nas casas japonesas. Um eletrodoméstico americano pode nem passar pela porta de uma casa japonesa. Mas esse raciocínio não se aplica aos automóveis, excetuando os modelos conhecidos aqui como “K” (microcompactos, motores de 660 cilindradas que fazem 20 km com um litro de gasolina). No caso do automóvel, o Japão não contribuiu para o seu desenvolvimento com a miniaturização (tanto que são os modelos médios os mais vendidos pelas montadoras japonesas no mundo). Então, qual será o diferencial?
Creio que a resposta seja Serviço, o verdadeiro espírito de atender da melhor forma possível as necessidades dos consumidores. Isso se resume na frase “o consumidor é um Deus”, repetida na década de 1970 dentro das indústrias japonesas. Não se trata de abrir um site para os consumidores colocarem comentários e assim saberem o que eles querem. Para os japoneses, Serviço é muito mais do que isso e começa bem antes de receber uma sugestão ou reclamação. É difícil explicar isso só com palavras e sei que terei que melhorar esse texto para ser compreendido, mas o conceito de Serviço e de ser atento às necessidades do outro está presente em tudo que é feito no Japão. É tudo uma prestação de serviço ao consumidor final, e todos os japoneses exercitam isso o tempo todo. Exemplificando a idéia com acessórios num carro, o carro que tem um porta-copos para o passageiro do banco de trás está prestando um serviço; já o outro carro que possui um porta-copos para o passageiro de trás na altura das mãos está prestando um serviço melhor.
Saindo da indústria automobilística, vamos às ruas. Aqui os ônibus não têm cobrador. Quem cobra é uma máquina e não há catracas – a passagem é paga através de cartões pré-pagos similares ao bilhete único. Ao motorista cabe dirigir e orientar o passageiro. Muitas vezes o passageiro nem precisa pedir informação: o motorista quando percebe que tem turistas a bordo se antecipa a informar sobre onde descer para ir a determinado lugar. Também é ele quem recarrega o cartão do passageiro, e faz isso enquanto abre as portas e espera o passageiro descer. Agora a maior surpresa é que no Japão o motorista agradece, um por um, a todos os passageiros por terem utilizado o seu ônibus! O motorista entende que ele está prestando um serviço para o consumidor e não para a empresa de ônibus. E os passageiros não tentam dar calote nem são grossos com o motorista. Deu para sentir a diferença?
Voltando ao universo dos carros, o americano calcula que 3 reclamações em 10 mil carros vendidos é um número aceitável. Já o japonês pensa ser inaceitável haver qualquer descontentamento – então vão verificar a fundo essas 3 reclamações para entender o que houve. Quando uma indústria americana vende 2 milhões de um modelo de carro aceitando que vai haver 600 descontentes, pode-se entender porque há tantos advogados nos Estados Unidos. Contratar advogado – apesar das famosas piadinhas que os americanos fazem a respeito dos advogados – é algo comum nos Estados Unidos pois faz parte da cultura local resolver qualquer tipo de desavença no Judiciário. No Japão é difícil encontrar advogados porque quase não há trabalho para eles. Já no Brasil o sistema é caro, moroso, ineficiente, ineficaz, mas fazem de conta que funciona. Se no Japão “o consumidor é um Deus”, no Brasil o consumidor fica ao Deus-dará.
Essa busca pela perfeição nos serviços ao consumidor no Japão fez a indústria automobilística ser algo melhor do que seria sem a participação japonesa. Na década de 1990 o mundo inteiro se empolgou com os métodos administrativos vindos do Japão, como Kanban, Defeito Zero e muitos outros. Mas não penso neles apenas como métodos técnicos para melhorar a produtividade. Na prática, as atitudes que caracterizam essas técnicas estão presentes na atitude cotidiana dos japoneses. Ninguém aqui pensa em Kanban ou Defeito Zero, mas agem dentro desse espírito mesmo se for numa mercearia de esquina. É um envolvimento total dos funcionários que se esforçam coletivamente e aplicam qualquer método conhecido para chegar à perfeição. Não fazem isso para agradar à empresa que paga seu salário, mas para atender seu consumidor do modo que também gostariam de ser atendidos. É necessária uma atitude altruísta para essas técnicas darem certo, por isso a técnica por si só não basta. No Japão todos entendem que hora estamos atrás de um balcão, e hora estamos na frente de um balcão. Ninguém fica só de um lado do balcão o tempo todo.
Aí chegamos à questão onde o Brasil encontra hoje um terrível gargalo na mão-de-obra: competências, eficiência e produtividade. Comparemos com o Japão. Apenas uma senhora cuida de um supermercado de porte médio em Kanazawa. Esse supermercado faz parte de uma rede: tem frutas, verduras, bebidas, material de limpeza, gelados, lanches frescos, tudo o que um estabelecimento desse tipo tem que ter. Essa única funcionária está no caixa quando precisa estar, e quando não há clientes ela está fazendo reposição de mercadorias, ou varrendo o chão, ou empacotando. No Brasil contratam-se 4 pessoas para fazer o que essa senhora no Japão faz sozinha. Por que ela faz isso? Em primeiro lugar, porque ela consegue. Em segundo, porque tudo é serviço ao consumidor e precisa ser feito. Como ela trabalha por 4 pessoas, é lógico e justo que ela ganhe 4 vezes mais. Isso justifica a renda per capita tão elevada dos japoneses. No Japão cada um trabalha por muitos, e quando se pergunta: “Trabalha para quem?”, a resposta é: “Para o consumidor”. E essa senhora também agradece a cada um dos clientes por ter ido àquela loja, assim como seus antepassados agradeciam aos deuses xintoistas.
Prestar Serviço não é só uma relação de trabalho: é a base ética de tudo no Japão. A própria palavra “Samurai” originalmente significava “a serviço de”. Ditados como “quem não vive para servir não serve para viver” não ficam só nas palavras no Japão.
“O consumidor é um Deus” não tem nada de religioso, mas os japoneses praticam isso à risca.
É minha opinião pessoal, depois de dois meses observando o Japão. Francisco Noriyuki Sato Jornalista e estagiário da JICA na Kanazawa University, cidade de Kanazawa, província de Ishikawa.